MARGARIDA e Santana, duas mulheres do povo, de joelhos, pedem que não lhes batam mais. Braços abertos, ora para cima, ora para baixo, têm, na pele de suas gargantas, agulhas afiadas. Sob as unhas, também agulhas. “Parem com essa maldade, pelo amor de Deus”, imploram desesperadamente.
Um padre e um bispo vão em socorro das duas, já que o povoado inteiro de Ribeirão Bonito, no sertão de Mato-Grosso, encontra-se com suas portas cerradas, e a maioria dos chefes de família escondidos no meio da mata, dado o terror desencadeado pela PM. Os dois religiosos pedem licença, entram na delegacia, e tentam interceder em favor das duas mulheres.
São recebidos com escárnio e palavrões.
Uma diálogo absurdo se passa, e num dado momento o soldado EZ; Ramalho Feitosa, da PM de Mato-Grosso, depois de desfechar uma tapa no rosto do Padre João Bosco Penido Burnier, golpeia-o com a coronha de seu revólver. Não satisfeito, dispara à queima-roupa, junto à cabeça do Padre Burnier, um tiro de revólver calibre 38, bala dumdum, proibida pela Convenção de Genebra. O Bispo D Pedro Casaldáliga, perplexo, naquele fim de tarde de 11 de outubro de 1976, recolhe o corpo de Burnier, com a cabeça esfacelada, coloca-o no interior de uma camioneta C-14, e o conduz para fora da Delegacia Policial, onde horas depois ele faleceria. O criminoso fugiu impunemente e nunca foi detido por nenhuma autoridade policial.
No dia 15 de julho de 1976, às 11 da manhã, a Colônia Indígena de Meruri, no leste de Mato-Grosso, foi atacada por 62 fazendeiros armados, cujas terras se encontravam dentro da reserva Bororo, e que começara a ser demarcada pela Funai na véspera.
O ataque foi de surpresa e a maioria dos índios encontrava-se trabalhando nas roças. O Padre Rodolfo Lunkeiben, 37 anos, missionário salesiano e amigo do Bispo D Pedro Casaldáliga, embora desarmado, foi assassinado, juntamente com o índio Simão. Quatro outros índios Bororo ficaram baleados. A invasão de Meruri foi chefiada pelo fazendeiro João Mineiro, que um ano após se entregou. Submetido a júri, foi absolvido em Barra do Garça. Saiu da prisão louvando o presidente João Figueiredo pela “abertura”.
Em outubro de 1976 ocorreu, no distrito de São Geraldo do Araguaia, município de Conceição do Araguaia, um conflito armado entre posseiros e policiais. Dois soldados da PM do Pará foram mortos e dois feridos. A reação policial demorou três dias para acontecer. Cinquenta policias desembarcaram no povoado de Perdidos, local onde ocorreu o conflito. Logo depois cheguei ao local. Vejamos o depoimento de João de Lima, dono de uma birosca: ” Aí, não deu outra coisa. Os policiais, exaltados, foram prendendo todo mundo e amarrando os homens com as mão para trás”.
Maria Rosa, mulher de João de Lima, acrescenta: “Amarraram até nosso filho, de 15 anos, o Beto. Todo os posseiros passaram a ser caçados feito bicho do mato e trazidos ao povoado. Permaneciam amarrados sob o sol, o dia todo, na beira do Rio, e os policias não permitiam que a gente desse água para eles. Uma calamidade”.
Enfurecidos com a morte dos dois companheiros, os soldados da PM do Pará, segundo depoimento da gente da região, não se limitaram a prender e bater. Queimaram as casas dos posseiros Daniel e Otacílio, tidos como líderes da emboscada. Já no dia 2 de novembro daquele ano, mais de 100 posseiros haviam sidos presos.
Um inquérito foi instaurado e indiciado o Padre Florentino Maboni, e os Bispos D Alano Pena, de Marabá, e D Estâvão, do Pará. A acusação das autoridades atribuía a esses religiosos incitamento, aliás a mesma que se faz agora contra os padres Francisco Gouriou e Aristides Camiou. Não é demais repetir que o Padre Maboni, preso no dia 30 de outubro daquele ano, em Boa Vista, foi levado para o destacamento da PM em São Geraldo do Araguaia, juntamente com dezenas de posseiros, e submetido a implacável interrogatório. Não dá para ninguém aqui do Sul imaginar como se passa um interrogatório, mesmo sem espancamentos, num clima assim, no sertão da Amazônia. Esse padre chegou mesmo a depor contra seus irmãos da igreja.
A guerrilha do Araguaia, que se passa nos anos de 70 a 73, envolvendo forças policiais, guerrilheiros, posseiros e religiosos é do conhecimento público e o acontecimento exaustivamente conhecido. Poderia prosseguir mencionando dezenas de conflitos armados, mas prefiro me fixar nos mais candentes, e que envolvam diretamente a Igreja, através de seus representantes.
Ouçamos agora a opinião do mestre Octavio Ianni, estudioso das questões sociais que envolvem o município de Conceição do Araguaia. Abordando a situação do posseiro ele diz: “Está condenado a ser pressionado, coagido e agredido pelo fazendeiro ou os seus representantes, privados ou públicos. Está proibido de organizar-se, de buscar apoio que lhe convém ou receber qualquer ajuda que contrarie os interesses do fazendeiro. Desde que a empresa agropecuária começou a formar-se e expandir-se ali, com o apoio político e econômico do Governo e com os incentivos fiscais e creditícios da SUDAM(Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) a violência(vamos grifar violência, pra ver o que vai dar?) passou a ser um elemento cotidiano na vida do posseiro. As pressões, as ameaças, a entrada de gado nas roças, a queima de casas, a presença do oficial de justiça representando a lei, ou da Polícia representando a violência institucionalizada…”
As tensões sociais que ocorrem na Amazônia não podem ser dissociadas dos movimentos populacionais produzidos pelo modelo fundiário brasileiros adotado por todos os Governos. Há uma corrente migratória procedente do Nordeste que dirige-se para a região do Araguaia-Tocantins, no Sul do Pará e Norte do Mato Grosso, onde se concentram a maior parte das fazendas de gado. Há nessa região mais de 50 mil famílias de posseiros, sem contar pelo menos 17 tribos indígenas, somando pelo menos 10 mil pessoas.
Os conflitos sociais, as tocaias, o apoio declarado do GETAT, Incra e mesmo forças policiais ao fazendeiros são situações exaustivamente denunciadas.
Um ex-presidente do Banco da Amazônia, Sr. Armando Mendes, portanto um homem acima de qualquer suspeita, garante que “estamos queimando um dos grandes trunfos que tem um país com as dimensões continentais do Brasil, quando comparado com a maioria das outras nações: ou seja, a possibilidade de uma fronteira econômica interna, aproveitando esses espaços para absorver adequadamente, proporcionando condições satisfatórias e razoáveis à população, os novos contingentes populacionais que se agregam a cada ano à população total do país. Estamos queimando esse recurso, na medida em que ele é apropriado por um número reduzido de grandes empresas, em função dos grandes projetos.”
A Sudam já aprovou e financiou 333 projetos na Amazônia. Os projetos agropecuários privilegiados com o que se convencionou chamar de incentivos fiscais – na verdade dinheiro do contribuinte, da nação – visavam a um rebanho de 5 milhões de cabeças de gado, o que até hoje não aconteceu. Pois bem; a pecuária ocupa hoje em torno de 9 milhões de hectares, e já destruiu madeira no valor estimado de 1 milhão de dólares. Mais; os projetos relativos à pecuária já levaram o poder público a investir 500 milhões de dólares, gerando 15 mil empregos. Quer dizer, para cada emprego, o Governo investiu 1 milhão e 593 mil cruzeiros. O valor de madeira desmatado, para implantação de rebanhos, já ultrapassou os 100 milhões de cruzeiros, enquanto o valor do rebanho existente hoje na Amazônia não ultrapassa os 28 bilhões de cruzeiros.
Essa a situação real, geradora de conflitos. Vamos repetir; não dá para separar o processo de ocupação da Amazônia da essência geral da política sócio-econômica brasileira, principalmente como parte integrante da política fundiária do país, na qual o capital privado – nacional e estrangeiro – tem levado a efeito diferentes alianças com o Estado Capitalista.
Então quando o Presidente do Senado, Sr. Jarbas Passarinho, hoje um homem acuado, ameaçado de perder sua liderança no Estado do Pará, devido a sua luta pelo poder com o atual Governador, denuncia a chamada Igreja progressista como responsável pelos conflitos armados na Amazônia ficamos sem saber como reagir. Rir, chorar de raiva, ironizar?
Ao abordar as invasões de terras- invasões contra quem, Senador? Quem invadiu primeiro? Esse é um conceito que merece uma reflexão mais profunda – ele declara que “só os cegos não vêem que isso é fruto de uma organização. De um planejamento, e em alguns casos até de treinamento prévio. Segundo o DOPS paulista, por trás, como sempre, uma figura da esquerda católica”.
O Coronel Passarinho vai mais longe. Oferece o seu sacrifício político em favor do presidente Figueiredo, da abertura, da redemocratização. Faz lembrar aquela história em que se pede a um pastor alemão que tome conta de um pacote de linguiças. Ora, Senador, não exageremos. Até porque passarinho na muda não canta, é o que nos ensina a sabedoria popular, hoje esquecida nas avaliações eleitorais
Edilson Martins
*reportagem retirada do jornal O Pasquim – edição número 638 – 23/09/1981
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