Desvendando o Boko Haram

Por Guilherme Vidal,

Dividida pela política britânica em protetorados do norte e do sul, a Nigéria foi incorporada pelo capitalismo global no início do século XX. Ao norte, os colonos saquearam e aboliram boa parte do Califado de Sokoto(1). Embora subjugados, a maioria dos muçulmanos da região se mostraram resistentes ao controle militar e, sobretudo, às práticas educacionais ocidentais.

 

 

Governados separadamente, as regiões foram unificadas em 1914. Com a modernização das linhas de ferro, as grandes cidades muçulmanas do norte — principalmente Kano, Kaduna e Zaria — receberam uma onda de trabalhadores cristãos de Igbo e Yoruba. Sabon gari é o nome dado, em Hausa, aos bairros que concentraram os “estrangeiros” vindos do sul.

Golpe de Estado e Guerra da Biafra

A Nigéria possui três principais etnias que correspondem à metade da população da Nigéria: Hausa-Fulani no norte, Yoruba no sudoeste e Igbo no sudeste. Em termos de religião, 50% da população é muçulmana, 40% cristã e 10% de outras religiões

Através de uma série de acordos políticos e econômicos, o governo britânico concedeu independência à Nigéria em 1960. Com maioria no parlamento, as elites da etnia Hausa-Fulani — formadas na época da colônia — nomearam o Primeiro-Ministro de acordo com os interesses ingleses. Nos anos que se sucederam, com o pretexto de acabar com a corrupção, as forças do Governo começaram a perseguir os políticos do sul. Como consequência, um grupo de militares pertencentes aos Yoruba, perpetuaram um golpe de Estado em janeiro de 1966.

Em represália ao ocorrido, militares Hausa começaram a prender e executar cidadãos dos Sabon gari — o que gerou um afluxo de imigrantes para o sul. Sentindo-se marginalizadas, as lideranças da etnia Igbo decidiram proclamar independência da região sudeste, desencadeando a Guerra da Biafra(1967–1970).

Além da profunda divisão interna, vale ressaltar os interesses imperialistas no conflito. Desde o período colonial, as companhias Shell e British Petroleum controlavam os poços de petróleo na Nigéria. No ano de 1967, De Gaulle e a petroleira ELF armaram os Igbos visando contratos na região da Biafra.

A guerra civil nigeriana durou 3 anos. Foram 2 milhões de vidas ceifadas. No meio dos milhares de presos se encontrava o dramaturgo Wole Soyinka. Os anos de violência e fome também geraram inúmeros refugiados — entre eles o revolucionário Fela Kuti e o fabuloso romancista Chinua Achebe.

Mu je mu kashe nyamiri
Mu kashe maza su da yan maza su
Mu chi mata su da yan mata su
Mu kwashe kaya su

Vamos matar os malditos igbos
Matar seus homens e meninos
Estuprar suas esposas e filhas
Tomar as propriedades deles

hino do genocídio, publicado e transmitido nas rádios e televisões de Kaduna. (2)

O genocídio dos Igbos mudou radicalmente a Nigéria pós-colonização. Como efeito imediato, o massacre levou à ressurgência de antigos valores espirituais dentro do islã. Para muitos pregadores locais, o norte encontrava-se em decadência ética e moral. Então, os sermões passaram a exaltar cada vez mais o puritanismo e o apego às tradições.

Seitas ‘’antiocidentais’’, inspiradas tanto na revolução iraniana de 1979 quanto na escalada do wahabismo saudita, emergiram no início da década de 80. As ruas de Maiduguri e de Kaduna vivenciaram a ascensão e a metamorfose do movimento Maitatsine. Esse grupo foi fundado pelo pregador Muhammadu Marwa, conhecido como Maitatsine (“aquele que amaldiçoa” em Hausa). Seus discursos atacavam o governo, os muçulmanos moderados e os valores educacionais ocidentais.

No verão de 1980, o exército nigeriano assassinou manifestantes nas ruas de Kano. A partir disso, a seita de Marwa radicalizou suas táticas ao incitar comunidades rurais contra meios urbanos e ao defender o uso da violência contra não muçulmanos — inclusive, o Boko Haram se apropriou de tais métodos.

BOKO HARAM

Jama’atu Ahlus Sunnah li Da’awati WAL(Comunidade dos Discípulos para a Propagação da Guerra Santa e do Islamismo)

O nome Boko Haram é capaz de capturar todos os estereótipos de um islamofóbico. Boko não se traduz para o inglês tampouco para o português. Essa palavra nunca significou ‘’livro’’(3). Segundo o linguista Paul Newman, o termo está mais para “farsa”, desde que associado à ideia de educação nos moldes Ocidentais. O vocábulo Haram refere-se à proibido, com o significado mais próximo de “vergonha”.

Outro mito sobre esse grupo: a criação de um Califado para governar a Nigéria com base na Sharia. Apesar de sua ideologia religiosa, o Boko Haram nasceu como um fenômeno de natureza política, pois contesta os valores de educação e laicidade do Estado, além de expor os interesses estrangeiros dentro de uma democracia corrupta.

Estado de Yobe, início dos anos 2000 — Ustaz Muhammad Yusuf, pregador que viria a ser o fundador do BH, começou a se destacar por seus sermões baseados na excomunhão e no exílio. Ele era descendente da tradição purista dos anos 70 (defendia inclusive a fiscalização rigorosa da Sharia nos estados do norte e o fim do ensino público “ocidental”). Além disso, seus discursos também denunciavam as práticas de transnacionais na Nigéria(4).

No estado de Borno(vizinho de Yobe), Yusuf tinha uma relação bastante cordial com o senador Ali Modu Sheriff. Em abril de 2003, este político, com o apoio do Boko Haram, disputou e venceu as eleições de Governador. Imediatamente, Yusuf acabara ganhando uma licença para ensinar numa das mesquita de Maiduguri, além de ter um íntimo nomeado para o cargo de Comissário Religioso do Estado.

Meses mais tarde, um grupo de 200 estudantes liderados por Yusuf decidiram fundar uma comunidade religiosa na região rural de Yobe. As autoridades locais protagonizam uma verdadeira barbárie. Em resposta, de 23 a 31 de dezembro de 2003, o Boko Haram realizou uma série de ataques direcionados às delegacias de polícia e aos prédios públicos — perto da fronteira do Níger. A insurreição durou quatro dias. Posteriormente, Mohammed Yusuf acabara sendo perseguido e parte para o exílio na Arábia Saudita.

No ano de 2004, a grande mídia internacional, quando não estava preocupada com as insurreições do Delta(5), se ocupava em propagar estereótipos sobre os estudantes Almajirai(6). Para eles, esses jovens seriam soldados à serviço do jihadismo global.

Com baixo desenvolvimento econômico, o norte da Nigéria possui mais de 70% da população vivendo com menos de um dólar por dia. As regiões com mais analfabetos estão entre as controladas pelo o Boko Haram.

As eleições de 2007 ganharam destaque no meio midiático ao serem marcadas por diversos assassinatos políticos. Em Maiduguri, o Boko Haram fez oposição ao candidato e governador Sheriff. Após se reeleger, este declarou guerra aos seus antigos aliados. Em junho de 2009, aconteceria um dos episódios que radicalizariam as bases do Boko Haram: quinze fiéis montados em motocicletas foram assassinados pelo Governo por não estarem usando capacete. No mesmo dia, Yusuf jurou vingança pela internet.

Um mês depois, o Boko Haram começou a se capitalizar saqueando bancos e pilhando delegacias. Com ordens judiciais, o Exército nigeriano executou mais de oitocentos. Nessa lista de mortos se encontrava Yusuf. As imagens de sua morte circularam no YouTube e alimentaram a sede por revanche dos membros da seita.

Yusuf sendo preso

Entre os antigos alvos do grupo estavam chefes de aldeias, agentes de segurança e políticos corruptos. Após a morte de seu líder espiritual, o Boko Haram passou a criar gosto por queimar escolas, matar alunos e professores, e sequestrar moradores estrangeiros. Ademais, a seita também aboliu o comando central e adotou a Shuria(uma espécie de conselho).

A partir de então, o Boko Haram só se fortaleceu. Em setembro de 2010, os seguidores do novo líder, Abubakar Shekau, libertaram 700 presos de um presídio perto de Maiduguri. E em pleno natal daquele ano, o grupo atacara diversos bairros cristãos no nordeste da Nigéria.

O Governo em pronunciamento oficial, no dia 03 de agosto de 2011, afirmou que não negociaria com “terroristas”. Ainda diversificando seus métodos operacionais, o Boko Haram estreou uma nova tática, o atentado suicida. No dia 26 de agosto, quase como resposta imediata as declarações do presidente, um veículo explodiu em frente ao prédio das Nações Unidas, em Abuja. Foram 25 mortos e mais de 100 feridos.

Atentado do dia 26 de agosto de 2011

“Aquela noite ainda não terminou”(7). A frase é da estudante Saa, uma das sobreviventes do dia 14 de abril de 2014. Eram onze horas da noite quando homens armados sequestraram 200 alunas de uma escola secundária cristã. Na época, o caso foi de grande comoção mundial. Tivemos até Michelle Obama fazendo coro por justiça(8).

Em resposta ao sequestro, os militares nigerianos divulgaram a morte de Shekau. Entretanto, alguns meses depois, o líder da seita apareceu em um vídeo assumindo a responsabilidade por um atentado à cidade de Baga(9). Essa ofensiva aconteceu em janeiro de 2015 e terminou com mais de 2 mil pessoas mortas.

O Boko Haram iniciou 2016 com uma série de ataques(10). No período de 48 horas, o grupo agiu em quatro localidades diferentes. Perto de Maiduguri, dezenas de cadáveres ficaram espalhados pelas ruas. Crianças foram queimadas vivas, segundo relatos de sobreviventes.

O aumento das tensões levanta alguns questionamentos sobre o futuro da região. A seita é responsável por quase 10% das mortes por violência, naquele que é o país mais populoso do continente africano.

Para entender as bases ideológicas do Boko Haram é necessário recapitular a trajetória pessoal de seu fundador, o professor e pregador Mohammed Yusuf. Nos anos de 1960 e 1970, o mundo árabe começou a vivenciar uma radicalização das ideias emancipatórias. Essa efervescência representava uma ameaça às elites da região, como também uma alternativa ao capitalismo norte-americano. Temerosos, os dirigentes sauditas se reuniram em torno da família Al Saud e, com apoio de Washington, investiram massivamente na propagação do Wahabismo.

Não é à toa que Yusuf estudara Teologia na Universidade de Medina, na Arábia Saudita. Portanto, tampouco é surpreendente que as Monarquias do Golfo Pérsico estejam na lista dos principais financiadores do Boko Haram.

Além do sequestro de estrangeiros e jornalistas, o grupo arrecada dinheiro através da pilhagem de bancos e aldeias, e do suporte ao comércio de drogas internacional(11). Geralmente, seus recrutas são jovens pobres que enfrentam a estagnação dos salários, o desemprego, o aumento dos preços e as péssimas condições de infraestrutura.

A seita também se beneficia do apoio operacional e logístico dado por organizações ligadas ao jihadismo global — como a Al-Qaeda do Magrebe, a Al-Shabaab e o Estado Islâmico. As Kalashnikov que armam os integrantes do Boko Haram são as contrabandeadas dos arsenais do ex-ditador líbio Muammar Kadhafi. Além disso, as bombas utilizadas nos atentados suicidas são fabricadas por jovens recém-formados na universidade.

NOTAS:

1- texto explicativo sobre o Califado — http://nalupa.com/africa-livre-04-o-califado-de-sokoto/
2 — http://www.tensoesmundiais.net/index.php/tm/article/viewFile/249/306
3- grande parte da mídia ocidental traduz “Boko” como “livro”.
4– naquela época, pescadores estavam sendo perseguidos por grandes indústrias agroalimentares.
5– Jovens tentavam tomar os poços de petróleo de empresas estrangeiras. http://www.publico.pt/mundo/noticia/nigeria-exercito-reforca-seguranca-no-delta-do-niger-1204730
6http://therevealer.org/archives/11086
7http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,aquela-noite-ainda-nao-terminou-diz-uma-das-garotas-sequestradas-pelo-boko-haram,1639348
8-“O direito das mulheres foi um grande pretexto para a guerra do Afeganistão, iniciada em 2001, quando Laura Bush e Charlie Blair — as esposas dos chefes de governo dos EUA e Grã-Bretanha — apoiaram os planos bélicos de seus maridos, apresentando-os como suposto meio de libertar as mulheres afegãs” http://outraspalavras.net/posts/nigeria-como-ocidente-alimenta-os-terroristas/
9– Na época, foram atribuídos poderes divinos ao líder do Boko Haram. Afinal, ele voltou dos mortos.
10http://www.vice.com/pt_br/read/pelo-menos-65-pessoas-morreram-depois-de-um-ataque-do-boko-haram-num-vilarejo-da-nigeria
11https://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ar&id=1376

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